Micróbio muda tradução de informações do DNA
1 de dezembro de 2009 | Autor: antonini
Protozoário enxerga “palavras”
iguais de forma distinta, de acordo com contexto. Maquinário
genético de criatura que usa cílios para se locomover contraria um
dos dogmas centrais da biologia molecular moderna
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Como todo bom
advogado sabe, às vezes a interpretação é mais importante que o
texto em si. E isso parece valer também quando o texto em questão
é a sequência de letras do DNA. É o que indica o estudo de um
organismo de uma célula só chamado Euplotes.
Um grupo de cientistas acaba de mostrar que um mesmo trecho de
três letras do genoma da criatura pode ser “lido” de formas
diferentes dependendo do contexto, o que faz com que moléculas
diferentes sejam sintetizadas pela célula. Isso contraria um dos
dogmas da biologia molecular, segundo o qual cada um desses
tripletos de DNA -os códons- só podem codificar uma molécula. Um
códon é a receita para a construção de cada um dos aminoácidos, os
tijolos básicos dos quais os seres vivos são feitos. As proteínas,
moléculas que fazem de tudo dentro da célula, são compostas de
dezenas ou centenas de aminoácidos enfileirados.
Existem na natureza 22 tipos de aminoácidos, cada um definido por
uma sequência de três letras no DNA ou RNA. Assim, o aminoácido
fenilalanina é codificado pela sequência UUU no RNA, a leucina
pelas “letras” CUC e o triptofano pelo códon UGG, por exemplo.
Cientistas já sabiam que um mesmo aminoácido podia ser produzido
por combinações diferentes de códons. Mas o inverso era
considerado impossível, pois seria uma violação das
características centrais do código genético. Se uma mesma
sequência pode produzir duas moléculas diferentes, afinal, a
evolução e a hereditariedade se tornam mais complicadas. Quem
garante, por exemplo, que um gene herdado por um animal de seus
pais terá a mesma função do gene original?
Entra em cena o Euplotes crassus, um protozoário. Biólogos da
Universidade de Nebraska (EUA), descobriram que nessa criatura às
vezes o códon UGA, que normalmente codifica o aminoácido cisteína,
pode codificar também a selenocisteína. Relataram a descoberta em
estudo na revista “Science”.
De alguma forma, explicam os pesquisadores, o DNA do Euplotes
“sabe” quando inserir uma selenocisteína no lugar da cisteína. Ele
não faz isso aleatoriamente, só nos genes que produzem proteínas
que incluem selenocisteína. “Achamos que a função-padrão do códon
UGA é inserir uma cisteína”, disse à Folha o bioquímico Vadim
Gladyshev, líder do grupo de pesquisas que fez o estudo.
No entanto, explica, nos genes de proteínas com selenocisteína, há
uma região do RNA que não é traduzida. Se há outros códons UGA no
mesmo gene, diz Gladyshev, essa sequência “pode ficar enterrada na
estrutura geral do RNA mensageiro [molécula que lê e copia a
informação do DNA] ou impedida de interagir com o maquinário
celular, então isso não interfere na inserção normal da cisteína”.
Em algumas condições, como na tradução dos genes de
selenoproteína, esse elemento é “exposto” e interage com a máquina
de tradução da célula de modo a ordenar a inserção da
selenocisteína.
Gladyshev diz que, por enquanto, essa bizarrice genética só é
conhecida no Euplotes. Embora ele mesmo afirme que sua descoberta
não força ninguém a repensar o código genético, ela abre uma
possibilidade intrigante: a de que o código possa ter se tornado
mais rico durante a evolução e que existam aminoácidos adicionais.