Quando os Estados Unidos foram nazistas
21 de novembro de 2008 | Autor: antonini
Em complô contra a América o escritor norte-americano Philip Roth
revela o lado fascista de seu país. Num romance que é bem mais que
ficção política, ele imagina o que teria acontecido se os EUA
tivessem se aliado a Hitler em 1940…
Guy Scarpetta
“Não se reescreve a história”. O ditado vale, certamente, para todos
– exceto para os romancistas, a quem ninguém impede de imaginar o
que poderia ter acontecido. Quando se trata de um escritor do
quilate de Philip Roth, isso pode até ser o ponto alto do romance, o
mais instigante, mas também o mais perturbador e mais adequado para
sacudir nossos preconceitos. Em Complô contra a América [1], Roth
imagina que, em 1940, Franklin Roosevelt, o presidente democrata,
não pode disputar um terceiro mandato. Charles Lindbergh, aviador e
herói das multidões, mas também anti-semita notório e simpatizante
do regime nazista, recebe o apoio do partido republicano. Apoiado
pela forte corrente isolacionista, que pretende manter os Estados
Unidos fora da guerra na Europa, acaba conquistando o poder. O tema
do romance é, portanto, a crônica desse ano fictício em que o
presidente, logo depois de chegar à Casa Branca, apressa-se em
assinar um pacto de não agressão com Hitler e depois com o Japão. Em
seguida, põe em marcha, sob pretextos vazios, uma política de
discriminação contra a comunidade judaica. Até o momento em que
Lindbergh sofre um acidente de avião, Roosevelt retorna à cena
pública e a história retoma o curso que hoje conhecemos…
Seria, como afirma a apresentação do livro, um tema de
“ficção-política”? Não exatamente: a ficção-política consiste, na
maior parte das vezes, em projetar no futuro uma espécie de
anti-utopia, carregada de conotação crítica sobre o próprio presente
(como no caso de Admirável mundo novo, de Huxley, ou A cadeira da
águia o belíssimo novo romance de Carlos Fuentes). Mas Roth
dedica-se, antes, a inventar um passado virtual. A função crítica
não está ausente (como não pensar em certos fatos recentes, quando o
autor constrói o cenário com os EUA virados para si mesmos, fazendo
da mentira uma política de Estado e dispostos a sacrificar seus
princípios, se assim julgarem necessário…). Mas ela se apresenta
mais conforme a visão de Robert Musil: para este, o real não era
mais que uma possibilidade entre outras. Cabia à arte romanesca
explorar as possibilidades da existência humana, não menos reais do
que o historicamente confirmado.
Um romance histórico de ficção
Numerosos romancistas nos últimos anos, não recearam abordar grandes
temas históricos. Podemos lembrar de Passo de caranguejo, de Günter
Grass; Estado de Sítio, de Juan Goytisolo; Desonra, de Coetzee; A
Festa do bode, de Mario Vargas Llosa; Neve, de Orhan Pamuk; entre
outros). Não que se trate de uma volta ao romance histórico, no
modelo elaborado no século XX. É, antes, uma questão de explorar as
zonas de sombra da história, o outro lado da verdade oficial, a
parte tácita dos consensos coletivos. Esclarecer as ambigüidades de
que a História, também ela, está permeada. Roth evoluiu também nesse
sentido. Seus primeiros romances eram centrados na comunidade
judaica de Nova Jersey, de onde saiu, em uma inteligente ruptura dos
limites entre realidade e ficção, adequada para desequilibrar os
efeitos de autenticidade ligados ao discurso íntimo ou pessoal (o
que culmina nessa obra prima que é O Avesso da vida). Mas, já há
algum tempo, Roth alargou seus horizontes, tomando como tema, por
exemplo, as tensões e contradições da situação judaica em Israel
(Operação Shylock), as ondas terroristas ligadas à contra-cultura
norte-americana dos anos 70 (Pastoral Americana), os confrontos
causados pelo macartismo, (Casei com um comunista),ou, mais
recentemente, as tiranias do politicamente correto, com um fundo de
retorno do puritanismo repressivo, revelado pelo caso
Clinton-Lewinski (A marca humana).
Agora, com Complô contra a América, Roth parece ter dado um passo
mais largo: seu objeto não é mais a realidade norte-americana, mas o
fastasma, a “besta imunda” que nela está e que poderia despertar.
Ele contribui com uma mudança na nossa maneira de ver o país, com o
desembaraço de qualquer desconfiança ingênua, de qualquer
credulidade cega.
Trata-se, portanto, de uma imaginação retroativa. O grande mérito do
romance é conjugar um regime de pura fantasia, na ficção (o leitor
não se esquece nunca que o que se conta a ele não é a verdade
comprovada) e um regime de verossimilhança, de credibilidade, na
narração (como nas narrativas realistas clássicas, simpatizamos com
o herói, vivemos com ele as emoções, perguntamo-nos a todo instante
como as coisas vão evoluir). O que faz Roth para conseguir tal
paradoxo? Ele mistura aos fatos meramente imaginários uma grande
abundância de fatos históricos reais (o terrível discurso antisemita
feito por Lindbergh em 1941), biográficos (o comportamento
atribuído, em tal contexto, a Roosevelt, a Fiorelo la Guardia, ao
prefeito de Nova York, ou ao popular animador de rádio Winchell é
perfeitamente coerente com o comportamento real desses personagens).
Mas, sobretudo, enraíza a narrativa em um universo que conhece muito
bem: a comunidade judaica de Newark nos anos 40. Tudo isso permite,
sem perder o foco da intriga histórica, fazer proliferar anedotas,
perfis, episódios privados e detalhes manifestamente colhidos de sua
própria experiência de vida e que têm, para o leitor, o mesmo toque
de autenticidade.
O olhar político das crianças
A jogada de mestre do autor foi ter feito a narrativa sob o olhar de
uma criança judia de sete anos (a mesma idade do autor, na época em
que os acontecimentos teriam ocorrido). Essa narrativa histórica
pode ser lida também como um romance didático. O que nos prende é
menos a história em si do que o modo como ela pode atingir e
perturbar a vida de uma criança, e como pode contribuir na formação
de sua consciência. Outra sacada, adjacente, é a demonstração de que
a infância é muito mais profundamente política do que pensamos: é
preciso, portanto, questionar a razão de um interesse tão vivo da
sociedade em propagar o mito oposto…
O narrador pertence a uma família judia perfeitamente integrada
(“tínhamos nossa pátria há três gerações”), tendo aderido aos
valores e ao modo de vida norte-americanos – ainda que
singularizados por traços de vida comunitária, que não causavam
reais conflitos. É através desse microcosmo familiar que ele vai ter
sua percepção dos acontecimentos políticos que afetam todo o país. O
poder, em torno do presidente Lindbergh, dos lobbies pró-Hitler. O
pacto de aliança dos Estados Unidos com as potências do eixo. A
contra ofensiva empreendida por Wichell, que resulta em levantes
anti-semitas com mortes na maior parte das grandes cidades
estadunidenses. O que mais o marca e ameaça o equilíbrio familiar,
entre tudo o que perturba sua vida cotidiana, é o alistamento do
primo no exército canadense para combater o nazismo na Europa, de
onde ele volta amputado e ferido; a maneira como seu próprio irmão
começa a negar o mundo judeu onde cresceu, depois de um plano de
“integração” que pretendia enviar os jovens judeus ao campo (para
melhor desmantelar as comunidades); as situações vexatórias que seus
pais sofriam; ou mesmo as rupturas violentas provocadas por essa
situação, ocorridas no seio da família ou no círculo de amigos e
solidariedade que o cercava.
Tudo isso filtrado pelo olhar de uma criança, que dá a certos dramas
pessoais (a perda de sua coleção de selos) a mesma importância que
às convulsões maiores da história. Sem poder evitar sentir as
perturbações a partir de seus afetos privados, de suas antipatias
íntimas (em relação a seu irmão ou a seu vizinho) e de suas
admirações mais intensas (em relação a seu primo herói e mutilado).
Misturando as ambivalências de sua relação com os pais e as
vicissitudes de seu próprio romance familiar, no sentido freudiano
(a significativa passagem em que ele faz uma tentativa de fuga que o
leva a… um orfanato). Como se essa meditação infantil fosse a melhor
maneira de traduzir para o leitor a forma subjetiva como a História
é vivida, e de dar a essa história imaginária um prodigioso senso de
veracidade.
Bush e sua política: raio em céu azul?
Outra grande solução de Roth, nesse romance, foi saber evitar um
discurso pedagógico, ou maniqueísta, onde se oporiam os bons e os
maus, as vítimas e seus carrascos. Não se trata aqui de um “conto
político” (como se falava, no século 18, dos “contos filosóficos”),
mas de um verdadeiro romance, onde os comportamentos humanos são
explorados também em suas contradições, indecisões e complexidades.
O primo vindo da Europa está longe de ser um herói imaculado. Ele se
rebela, está no mau caminho, passa os dias desocupado, ou entregue a
atividades suspeitas.
O próprio mundo judeu tem seus covardes, seus traidores (a tia do
narrador, ou o rabino Bengelsdorf, que se alia a Lindbergh, para
quem serve de álibi). O irmão do narrador, tomado pela propaganda
oficial, não para de exalar ressentimento de sua origem. Winchell, o
porta-voz da oposição a Lindbergh, é também demagogo da pior
espécie. Já o novo vizinho italiano, que se instala no prédio do
narrador para temor de todos, manifesta uma franca e espontânea
solidariedade a seus vizinhos judeus perseguidos… É aí que Roth
expressa a grande idéia de Milan Kundera: a história, para um
verdadeiro romancista, é menos o objeto do que a luz que nos permite
vê-lo. Na experiência humana, as zonas de paradoxos e ambigüidades
escapam a toda redundância moral…
Poderia haver uma lição a tirar. No momento em que certos
propagandistas liberais querem fazer crer que os EUA são
consubstancialmente democratas, e que a desastrosa política de
George W.Bush é apenas um lamentável arranhão em corpo são, coube a
Roth sugerir, na contramão do consenso, que essa democracia é
frágil, e que as forças que fizeram o país beirar o nazismo não
estão de todo ausentes…
Foi necessária uma obra prima do romance permitir enxergar. Philip
Roth a escreve com fabuloso poder de ironia, de insolência e de
lucidez. No fundo, se devesse existir uma só razão para não cairmos
no anti-americanismo primário, essa razão seria a existência, nos
Estados Unidos, de um escritor como esse.
Tradução: Leonardo Abreu leonardoaabreu@yahoo.com.br
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