Criar igreja para se livrar de impostos
25 de agosto de 2010 | Autor: antonini
Após fundar igreja, reportagem da Folha abre conta bancária e faz
aplicação isenta de IR e, ainda, além de vantagens fiscais,
ministros religiosos têm direito a prisão especial e estão
dispensados de prestar serviço militar.
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Bastaram dois dias úteis e R$ 218,42 em despesas de cartório para a
reportagem da Folha criar uma igreja. Com mais três dias e R$ 200, a
Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio já tinha CNPJ, o que
permitiu aos seus três fundadores abrir uma conta bancária e
realizar aplicações financeiras livres de IR (Imposto de Renda) e de
IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).
Seria um crime perfeito, se a prática não estivesse totalmente
dentro da lei. Não existem requisitos teológicos ou doutrinários
para a constituição de uma igreja. Tampouco se exige um número
mínimo de fiéis.
Basta o registro de sua assembleia de fundação e estatuto social num
cartório. Melhor ainda, o Estado está legalmente impedido de
negar-lhes fé. Como reza o parágrafo 1º do artigo 44 do Código
Civil: “São livres a criação, a organização, a estruturação interna
e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder
público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos
e necessários ao seu funcionamento”.
A autonomia de cada instituição religiosa é quase total. Desde que
seus estatutos não afrontem nenhuma lei do país e sigam uma
estrutura jurídica assemelhada à das associações civis, os templos
podem tudo.
A Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, por exemplo, pode sem
muito exagero ser descrita como uma monarquia absolutista e
hereditária. Nesse quesito, ela segue os passos da Igreja da
Inglaterra (anglicana), que tem como “supremo governador” o monarca
britânico.
Livrar-se de tributos é a principal vantagem material da abertura de
uma igreja. Nos termos do artigo 150, VI, b da Constituição, templos
de qualquer culto são imunes a impostos que incidam sobre o
patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com suas finalidades
essenciais.
Isso significa que, além de IR e IOF, igrejas estão dispensadas de
IPTU (imóveis urbanos), ITR (imóveis rurais), IPVA (veículos), ISS
(serviços), para citar só alguns dos vários “Is” que assombram a
vida dos contribuintes brasileiros. A única condição é que todos os
bens estejam em nome do templo e que se relacionem a suas
finalidades essenciais -as quais são definidas pela própria igreja.
O caso do ICMS é um pouco mais polêmico. A doutrina e a
jurisprudência não são uniformes. Em alguns Estados, como São Paulo,
o imposto é cobrado, mas em outros, como o Rio de Janeiro e Paraná,
por força de legislação estadual, igrejas não recolhem o ICMS nem
sobre as contas de água, luz, gás e telefone que pagam.
Certos autores entendem que associações religiosas, por analogia com
o disposto para outras associações civis, estão legalmente proibidas
de distribuir patrimônio ou renda a seus controladores. Mas nada
impede -aliás é quase uma praxe- que seus diretores sejam também
sacerdotes, hipótese em que podem perfeitamente receber proventos.
A questão fiscal não é o único benefício da empreitada. Cada culto
determina livremente quem são seus ministros religiosos e, uma vez
escolhidos, eles gozam de privilégios como a isenção do serviço
militar obrigatório (CF, art. 143) e o direito a prisão especial
(Código de Processo Penal, art. 295).
Na dúvida, os filhos varões dos sócios-fundadores da Igreja
Heliocêntrica foram sagrados minissacerdotes. Neste caso, o modelo
inspirador foi o budismo tibetano, cujos Dalai Lamas (a reencarnação
do lama anterior) são escolhidos ainda na infância.
Voltando ao Brasil, há até o caso de cultos religiosos que obtiveram
licença especial do poder público para consumir ritualisticamente
drogas alucinógenas.
Desde os anos 80, integrantes de igrejas como Santo Daime, União do
Vegetal, A Barquinha estão autorizados pelo Ministério da Justiça a
cultivar, transportar e ingerir os vegetais utilizados na preparação
do chá ayahuasca -proibido para quem não é membro de uma dessas
igrejas.
Se a Lei Geral das Religiões, já aprovada pela Câmara e aguardando
votação no Senado, se materializar, mais vantagens serão
incorporadas. Templos de qualquer culto poderão, por exemplo,
reivindicar apoio do Estado na preservação de seus bens, que gozarão
de proteção especial contra desapropriação e penhora.
O diploma também reforça disposições relativas ao ensino religioso.
Em princípio, a Igreja Heliocêntrica poderá exigir igualdade de
representação, ou seja, que o Estado contrate professores de
heliocentrismo.
Colaboraram os bispos CLAUDIO
ANGELO, editor de Ciência, e RAFAEL GARCIA,
da Reportagem Local