A arma do juízo final
12 de abril de 2010 | Autor: antonini
Já é lugar comum que quem não aprenda da história está condenado a
repetir erros.
Há 1942 anos, os judeus na província chamada Palaestina
revoltaram-se contra o Império Romano. Considerado em retrospectiva,
parece loucura. A Palestina era parte pequena e insignificante do
império planetário que acabava de impor derrota acachapante ao poder
rival – o Império dos Partos (a Pérsia) – e vencera também grande
rebelião na Britânia. Que chances teria a revolta dos judeus?
Sabe Deus o que passaria pela cabeça dos Zelotes. Mataram os líderes
moderados, que alertavam contra provocar o império, e haviam ganhado
prestígio entre a população judaica local. Confiavam em Deus. Talvez
confiassem também nos judeus de Roma e acreditassem que a influência
deles sobre o Senado conseguiria segurar o imperador, Nero. Talvez
tivessem ouvido dizer que Nero estava enfraquecido, a beira de ser
derrubado.
Sabe-se como acabou: depois de três anos de luta, os rebeldes foram
esmagados, Jerusalém caiu e o templo foi reduzido a cinzas. Os
últimos Zelotes suicidaram-se, em Massada.
Os sionistas bem que tentaram aprender com a história. Agiram de
modo racional, não provocaram as grandes potências, trabalharam para
obter o que fosse possível em cada caso. Fizeram concessões e cada
concessão serviu-lhe de base para andar adiante. Inteligentemente
usaram o radicalismo de seus adversários e conquistaram a simpatia
do mundo.
Mas desde o início da ocupação, a mente dos sionistas parece
mergulhada em trevas. O culto de Massada tornou-se dominante.
Promessas divinas voltam a desempenhar função importante no discurso
público em Israel. Partes significativas do público seguem hoje os
novos zelotes.
E a fase seguinte também já começa a repetir-se: os líderes de
Israel estão começando a rebelar-se contra a nova Roma.
O que começou como insulto ao vice-presidente dos EUA já se converte
agora em algo muito maior. O camundongo pariu um elefante.
Nos últimos tempos, o governo de ultra direita em Jerusalém começou
a tratar o presidente Obama com mal disfarçado desprezo. Os medos
que ainda havia em Jerusalém no começo de seu governo dissiparam-se.
Para eles, Obama é uma pantera negra de papel. Até desistiu de
exigir verdadeiro congelamento das construções nas colônias. Cada
vez que lhe cuspiram na cara, Obama comentou que começava a chover.
Agora, ostensivamente de repente, a paciência esgotou-se. Obama, seu
vice-presidente e seus principais assessores condenam, cada dia com
mais severidade, o governo de Netanyahu. A secretária de Estado
Hillary Clinton impôs um ultimato: Netanyahu tem de por fim a toda e
qualquer construção nas colônias, também em Jerusalém Leste; tem de
começar a negociar os problemas centrais do conflito, inclusive
Jerusalém Leste, e mais.
Surpresa total em Israel. Foi como se Obama cruzasse o Rubicão,
quase como o exército egípcio cruzou o canal de Suez em 1973.
Netanyahu deu ordem para mobilizar todas as reservas de Israel nos
EUA e avançar todos os blindados diplomáticos. Todas as organizações
de judeus nos EUA receberam ordens de unir-se à campanha. O AIPAC
fez soar as cornetas de chifre de carneiro e ordenou que seus
soldados, no Senado e na Câmara, atacassem a Casa Branca.
Parecia que ia começar a batalha decisiva. Os líderes israelenses
tinham certeza de que derrotariam Obama. Mas então, de repente,
ouviu-se um som estranho: o som da arma do juízo final. O homem que
decidiu ativá-la é inimigo de novo tipo, que ainda não se vira em
Israel.
David Petraeus é o oficial mais popular do exército dos EUA. General
de quatro estrelas, filho de um capitão do mar holandês que emigrou
para os EUA quando seu país foi ocupado pelos nazistas e lá viveu
toda a vida, desde a infância. Foi “distinguished cadet” na academia
militar de West Point e primeiro colocado na Escola de Alto Comando
do Exército. Como comandante em combate, só colheu elogios. Escreveu
sua tese de doutoramento (sobre as lições do Vietnã) em Princeton e
trabalhou como professor-assistente na cátedra de Relações
Internacionais na Academia Militas dos EUA.
No Iraque, comandou as forças em Mosul, a cidade mais problemática
de todo o país. Concluiu que, para derrotar aqueles inimigos, os EUA
tinham de conquistar corações e mentes da população civil, ganhar
aliados locais e gastar mais dinheiro que munição. A população local
conhecia-o como “Rei David”. Seu sucesso foi considerado tão
significativo, que seus métodos incorporaram-se à doutrina oficial
do exército dos EUA.
Sua estrela ascendeu rapidamente. Foi nomeado comandante das forças
da coalizão no Iraque e logo se tornou chefe do Comando Central do
exército dos EUA, que cobre todo o Oriente Médio exceto Israel e
Palestina (os quais ‘pertencem’ ao comando norte-americano na
Europa).
Quando Petraeus fala, o povo dos EUA ouve. Como pensador de questões
militares, não tem rivais.
Essa semana, Petraeus enviou mensagem claríssima: depois de examinar
os problemas de sua Área de Responsabilidade [ing. Area Of
Responsibility, AOR] – que inclui, além de outros setores, o
Afeganistão, o Paquistão, o Irã, o Iraque e o Iêmen – chegou ao que
chamou de “causas de raiz da instabilidade” na Região. O primeiro
item dessa lista é o conflito Israel-Palestina.
No relatório que Petraeus encaminhou ao Comitê das Forças Armadas,
lê-se:
“As intermináveis hostilidades entre Israel e alguns de seus
vizinhos implicam desafios específicos à nossa habilidade para obter
avanço no rumo de nossos interesses na AOR. (…) O conflito fomenta o
sentimento anti-norte-americano, porque se percebe que os EUA
favorecem Israel. A fúria dos árabes motivada pela questão palestina
limita a força e a profundidade das parcerias que os EUA construam
com governos e povos na AOR e enfraquece a legitimidade de regimes
moderados no mundo árabe. Simultaneamente, al-Qaeda e outros grupos
militantes exploram essa fúria e assim mobilizam apoios. O conflito
[Israel-Palestina] também faz crescer a influência do Irã no mundo
árabe, mediante seus clientes, o Hizbollab libanês e o Hamás.”
Como se não bastasse, Petraeus enviou seus oficiais para que
apresentasse essas conclusões ao Conselho dos Comandantes do
Estado-maior.
Em outras palavras: a paz entre palestinos e israelenses não é
questão específica de dois grupos, mas assunto que envolve o
superior interesse nacional dos EUA. Isso significa que os EUA tem
de alterar o apoio cego que tem dado ao governo israelense e deve
impor a Solução de Dois Estados.
O argumento, como tal, não é novo. Muitos especialistas já disseram
aproximadamente a mesma coisa. (Imediatamente depois dos ataques de
11/9, escrevi também nessa direção e previ que os EUA teriam de
mudar suas políticas. Daquela vez, nada aconteceu.) Mas agora, a
mesma ideia aparece em documento oficial redigido pelo comandante
norte-americano responsável.
O governo Netanyahu imediatamente entrou em modo de limitar os
danos. Os porta-vozes disseram que Petraeus tenta impor sua visão
estreita; que nada entende de questões políticas; que o argumento é
falho. Nem por isso conseguiram impedir que, em Jerusalém, muitos
começassem a suar frio.
Todos sabemos que o lobby pró-Israel domina sem limites o sistema
político nos EUA. Isso, ou quase isso. Todos os políticos e altos
funcionários norte-americanos morrem de medo dele. O menor desvio do
roteiro prescrito pelo AIPAC, implica suicídio político.
Mas há um ponto fraco na armadura desse Golias político. Como
Aquiles no calcanhar, esse descomunal lobby pró-Israel tem um ponto
vulnerável o qual, se atingido, pode neutralizar todo o seu poder.
Boa ilustração desse fenômeno é o caso Jonathan Pollard
(relacionados a eventos ocorridos em 1983-1984). Esse
judeu-norte-americano era empregado de uma importante agência de
serviços de inteligência e espionava para Israel. Para os
israelenses, era herói nacional, um judeu que cumpria seus deveres
de judeu. Mas para a comunidade de inteligência dos EUA, não passava
de um traidor que pôs em risco a vida de vários agentes
norte-americanos. Não satisfeitos com as penalidades de rotina, os
EUA induziram a corte de justiça a condená-lo à morte[1]. Desde
então, todos os presidentes dos EUA tem recusado os repetidos
pedidos do governo de Israel para que a sentença seja comutada. Até
agora, nenhum presidente norte-americano atreveu-se a confrontar os
altos setores da inteligência dos EUA, para os quais Pollard é
criminoso e merece a sentença de morte.
O aspecto mais significativo desse caso faz lembrar o famoso
comentário de Sherlock Holmes, sobre cachorros que não latiram certa
noite. No caso Pollard, o AIPAC não latiu. Silêncio. Toda a
comunidade dos judeus norte-americanos manteve-se (e assim continua
até hoje, 25 anos depois!) calada. O AIPAC jamais defendeu Pollard.
Por quê? Porque a maioria dos judeus norte-americanos estão sempre
dispostos a fazer absolutamente tudo – tudo! – pelo governo de
Israel. Com uma única exceção: jamais farão coisa alguma que dê a
impressão de ferir a segurança dos EUA. Basta que suba a bandeira da
segurança, e todos os judeus, como todos os norte-americanos,
perfilam-se e batem continência. A espada de Dâmocles da suspeita de
deslealdade pende sobre as cabeças dos judeus norte-americanos. Não
há pior pesadelo para eles do que serem acusados de pôr a segurança
de Israel acima da segurança dos EUA. Exatamente por isso, é
vitalmente importante para os judeus norte-americanos repetirem
eternamente, sem descanso, o mantra que reza que os interesses de
Israel são idênticos aos interesses dos EUA.
E então, agora, aparece o mais importante general do exército dos
EUA e diz que não está sendo bem assim. Que, hoje, a política do
atual governo de Israel está, sim, fazendo aumentar o risco de vida
que os soldados norte-americanos enfrentam no Iraque e no
Afeganistão.
Por enquanto, o assunto tem aparecido só marginalmente, em
comentários de especialistas e não está, ainda, na grande mídia. Mas
a espada já saiu da bainha – e os judeus norte-americanos já tremem,
hoje, só de ouvir o rugido ainda distante desse terremoto.
Essa semana, um cunhado de Netanyahu usou a versão israelense de
nossa arma do juízo final. Declarou que Obama seria “antissemita”. O
jornal oficial do partido Shas garante que Obama, de fato, é
muçulmano. Representam a direita radical e seus aliados; já
escreveram que “Hussein Obama, negro que odeia judeus, tem de ser
derrotado nas próximas eleições parlamentares e, depois, na próxima
eleição presidencial.”
(Importante pesquisa feita em Israel e publicada ontem mostra que os
israelenses não acreditam nessas insinuações: a vasta maioria
entende que Obama dá tratamento justo a Israel. De fato, os números
de aprovação de Obama são mais altos que os de Netanyahu.)
Mas se Obama decidir reagir e ativar sua arma do juízo final – a
acusação de que Israel põe em risco a vida dos soldados dos EUA – as
consequências serão catastróficas para Israel.
Por hora, parece ter sido tiro que os destróiers dão para ‘acordar’
a marujada e sinalizar para que outro navio faça o que foi instruído
a fazer. O aviso é bem claro. Ainda que a crise atual amaine, não há
dúvida de que voltará a incendiar-se outras e outras vezes, enquanto
perdurar no poder, em Israel, a atual coalizão de governo.
Quando o filme Hurt Locker foi premiado no concurso Oscar-2010, todo
o público norte-americano estava unido na preocupação com a vida dos
seus soldados no Oriente Médio. Se esse público convencer-se de que
Israel o está apunhalando pelas costas, será desastre completo para
Netanyahu. E não só para ele.